A Verdadeira Pena para o Roubo

Certa vez em uma mesquita sunita perguntei a um Sheikh: Se uma pessoa roubar algo com pouco valor, então devemos decepar sua mão? Ele respondeu que só a partir de um certo valor, se não me engano era de 18 gramas de ouro… Creio que o peso do grama de ouro esteja por volta dos R$96,00, assim sendo, deveríamos cortar a mão de quem roubar 18 x R$96,00 = R$1728,00… Se for R$1727,00 ou R$1727,99 então podemos perdoar! Absurdo! É melhor tentarmos achar respostas no Alcorão:

39:18 (Aqueles) escutam as palavras e seguem o melhor (significado) delas! São aqueles que Deus encaminha, e são os sensatos.

O Alcorão prescreve um castigo para quem rouba, mas é possível que o culpado seja absolvido deste castigo:

5: 38 Quanto ao ladrão e à ladra, decepai-lhes فَاقْطَعُوا as mãos أَيْدِيَهُمَا , como castigo de tudo quanto tenham cometido; é um exemplo, que emana de Deus, porque Deus é Poderoso, Prudentíssimo.
39 Aquele que, depois da sua iniquidade, se arrepender e se emendar, saiba que Deus o absolverá, porque é Indulgente, Misericordiosíssimo.
40 Ignoras, acaso, que a Deus pertence a soberania dos céus e da terra? Ele castiga a quem deseja e perdoa a quem Lhe apraz, porque é Onipotente.

Observe que que a palavra “mãos” está no plural dual, assim a pena aplica-se às duas mãos, diferente das traduções que as seitas apresentam. O verbo “decepar” acima possui uma derivação da seguinte forma verbal: قطَع. Os seguintes trechos referem-se ao Faraó e possuem a mesma “raiz” com a ligeira diferença de possuirem um pequeno w em cima, chamado shadda ou reforço: قَطَّع

7:124 Juro que vos deceparei لَأُقَطِّعَنَّ as mãos e os pés dos lados opostos e então vos crucificarei a todos.

20:71 Disse (o Faraó): Credes n’Ele sem que eu vo-lo permita? Certamente ele é o vosso líder e vos ensinou a magia. Juro que vos amputarei فَلَأُقَطِّعَنَّ  a mão e o pé de lados opostos e vos crucificarei em troncos de tamareiras; assim, sabereis quem é mais severo e mais persistente no castigo.

Os versículos a seguir também possuem a mesma raiz dos trechos referentes ao Faraó, envolvem um episódio no qual certas mulheres cortam suas mãos devido ao deslumbre que têm ao observar a beleza de José, estes trechos possuem shadda, mas é claro que elas não amputariam suas mãos:

12:31 Mas quando ela se inteirou de tais falatórios, convidou-as à sua casa e lhes preparou um banquete, ocasião em que deu uma faca a cada uma delas; então disse (a José): Apresenta-te ante elas! E quando o viram, extasiaram-se, à visão dele, chegando mesmo a ferirوَقَطَّعْنَ suas próprias mãos. Disseram: Valha-nos Deus! Este não é um ser humano. Não é senão um anjo nobre.
50 Então, disse o rei: Trazei-me esse homem! Mas quando o mensageiro se apresentou a José, ele lhe disse: Volta ao teu amo e dize-lhe que se inteire quanto à intenção das mulheres que haviam ferido قَطَّعْنَ  as mãos. Meu Senhor é conhecedor das suas conspirações.

Podemos observar que dificilmente elas teriam decepado suas mãos, por mais belo que José fosse isto seria quase que impossível, por isto observamos a tradução com o verbo “ferir”. A mesma raiz é encontrada a seguir:

5:33 O castigo, para aqueles que lutam contra Deus e contra o Seu Mensageiro e semeiam a corrupção na terra, é que sejam mortos, ou crucificados, ou lhes seja decepada تُقَطَّعَ  a mão e o pé opostos, ou banidos. Tal será, para eles, um aviltamento nesse mundo e, no outro, sofrerão um severo castigo.

Vê-se claramente que em 5:33 não é mencionado o roubo, mas algo muito mais grave: Lutar contra Deus. A diferença entre as “raízes” citadas acima é o sinal “shadda” o pequeno w sobre a letra medial, este símbolo pode possuir a função de intensificar o verbo, por exemplo:

 كَسَرَ = Quebrar                                  كَسَّرَ = Triturar, intensificação de كَسَرَ

Assim conclui-se que o verbo em 5:38 está num caso menos intenso, porém, a história envolvendo José nos dá uma visão ainda mais contrária à interpretação que apoia a decepação, pois possui shadda, pois é claro que as mulheres não deceparam suas mãos. Talvez o sentido mais cabível para o verbo seja ferir, vejamos um comentário de um irmão de Portugal, o Pedro Miguel Melo que traduziu Edip Yuksel:

O Alcorão usa frequentemente palavras com mais de um significado aplicável e relevante. Isto leva a versos que tem dois, três, ou mais significados ao mesmo tempo, versos que fazem o trabalho do tradutor requintadamente difícil. Chegamos agora ao tal verso. A forma verbal que traduzido como “marca, corte, ou cortar” vem de uma raiz do verbo – QaTa’A – que ocorre muitas vezes no Alcorão. Em quase todas as suas ocorrências no Alcorão, este verbo significa “romper um relacionamento” ou “para acabar com um ato”. Apenas em dois casos (12:31 e 12:50) este verbo é claramente usado para descrever um corte físico, em outra instância (69:46), o verbo pode, eventualmente, ser interpretado dessa forma. Uma forma similar deste mesmo verbo – que implica repetição ou a gravidade da ação – ocorre no Alcorão 17 vezes. Esta forma particular, é utilizada para significar fisicamente cortar, ou como uma metáfora para a separação de um relacionamento, ou para descrever fisicamente uma marca, mas não o corte. Assim, o versículo recomenda punição por furto ou roubo, no contexto do Alcorão e sua terminologia (e não a terminologia ou interpretação atribuídas a Maomé ou a seus seguidores). Deus tem permitido a incorporação de uma gama de possíveis penalidades. Por exemplo:  Corte ou marcação das mãos da pessoa, como uma forma de humilhação pública e identificação, fisicamente cortar as mãos da pessoa, ou cortar os meios que a pessoa tem para roubar e arrombar (presumivelmente através reabilitação ou prisão). O ato de impor qualquer destas penas, ou qualquer das suas combinações, que, obviamente, depende dos fatos de cada caso, da culpabilidade e da capacidade mental do acusado, e a capacidade da sociedade como um todo para agir de acordo com outras instruções de Deus no Alcorão. Observe, por exemplo, que uma Sociedade muçulmana não pode punir uma pessoa com fome por roubar alimentos, uma vez deixando um membro da sociedade passar fome é um crime muito maior do que o ato de roubar comida. Tal sociedade, na verdade, demonstra as características de uma sociedade de pessoas ingratas! (Veja 107:1-7; 89:17-20; e 90:6-20). Considerando apenas o roubo como um crime individual, e defendendo a interpretação mais severa possível do Alcorão, isto não é justo nem coerente com a escritura.

Referências: http://www.quranicpath.com

                    Traduções do Alcorão de Helmi Nasr e Samir El-Hayek

                    Gramática do Árabe Moderno – David



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